O 'bi' em bilinguismo: o ensino tardio nas escolas brasileiras
Ronice Muller de Quadros
Se não fosse a diferença na modalidade, todos teriam tranquilidade em reconhecer as pessoas surdas como bilíngues. Elas nascem no Brasil e, portanto, falariam a língua portuguesa. Convivem com surdos, logo, usam a língua de sinais brasileira. No entanto, não é dessa forma que caracterizamos a situação bilíngue dos surdos brasileiros, se é que podemos considerá-los genericamente com este status. Vários aspectos devem ser considerados no caso específico dos surdos:
a) a modalidade das línguas: visuoespacial e oral-auditiva;
b) surdos filhos de pais ouvintes: os pais não conhecem a língua de sinais brasileira;
c) o contexto de aquisição da língua de sinais: um contexto atípico, uma vez que a língua é adquirida tardiamente, mas mesmo assim tem status de L1;
d) a língua portuguesa representa uma ameaça para os surdos;
e) a idealização institucional do status bilíngue para os surdos: as políticas públicas determinam que os surdos devem aprender português;
f) os surdos querem aprender na língua de sinais;
g) revisão do status do português pelos próprios surdos: reconstrução de um significado social a partir dos próprios surdos.
Pensar no bi do bilinguismo na educação de surdos requer, minimamente, pensar nas considerações apresentadas.
O fato de as línguas de sinais serem adquiridas pelos surdos de forma assistemática, ou seja, de forma espontânea diante do encontro surdo-surdo2 , assim como acontece a aquisição de quaisquer outras línguas por outros falantes de outros grupos sociais, caracteriza o processo de aquisição da linguagem em sua plenitude. Este fato também implica rever o processo de aquisição da língua falada no país, no caso do Brasil, da língua portuguesa, uma vez que este acontece por meio do ensino. Os surdos, em sua grande maioria, crescem em famílias de pais que falam e ouvem o português e não adquirem esta língua (apesar de estarem imersos 3).
Eles olham as bocas se movimentando e sabem que, através destes movimentos, as pessoas expressam pensamentos e ideias, mas, mesmo havendo tal percepção, não compreendem esta língua. Em alguns casos, passam por processos terapêuticos intensos e chegam a adquirir a língua portuguesa, mas de forma sistemática e limitada. A diferença na modalidade da língua e do acesso a ela implica diferença na forma de aquisição dessa língua. Os surdos privilegiam o visuoespacial e a língua de sinais é visuoespacial. Vários estudos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987; Karnopp, 1994; Quadros, 1995) evidenciam que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. O fato de o processo ser concretizado através de línguas visuoespaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse processo vem sendo tratado na educação de surdos.
As crianças surdas têm tido acesso à língua de sinais brasileira tardiamente, pois as escolas não oportunizam o encontro adulto surdo-criança surda. Elas encontram os surdos adultos na fase da adolescência, normalmente, por acaso. Como diz Perlin (1998, p.54), este encontro representa o encontro com o mundo,
é uma identidade subordinada com o semelhante surdo, como muitos surdos narram. Ela se parece a um ímã para a questão de identidades cruzadas. Esse fato é citado pelos surdos e particularmente sinalizado por uma mulher surda de 25 anos: aquilo no momento de meu encontro com os outros surdos era o igual que eu queria, tinha a comunicação que eu queria. Aquilo que identificavam eles identificava a mim também e fazia ser eu mesma, igual. O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem.