Trecho
Introdução ao primeiro olhar: o que muda na educação
dos surdos quando se diz que alguma coisa muda?
Carlos Skliar (Org.)
Tem-se acentuado, nas últimas três décadas, um conjunto novo de discursos e de práticas educacionais que, entre outras questões, permite desnudar os efeitos devastadores do fracasso escolar massivo, produto da hegemonia de uma ideologia clínica dominante na educação dos surdos.
As ideias dominantes, nos últimos cem anos, são um claro testemunho do sentido comum segundo o qual os surdos correspondem, se encaixam e se adaptam com naturalidade a um modelo de medicalização da surdez, numa versão que amplifica e exagera os mecanismos da pedagogia corretiva, instaurada nos princípios do século XX e vigente até os nossos dias. Foram mais de cem anos de práticas de tentativa de correção, normalização e de violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos.
A mudança registrada nos últimos anos não é, e nem deve ser, compreendida como uma mudança metodológica dentro do mesmo paradigma da escolarização. O que estão mudando são as concepções sobre o sujeito surdo, as descrições em torno da sua língua, as definições sobre as políticas educacionais, a análise das relações de saberes e poderes entre adultos surdos e adultos ouvintes, etc.
Entre as múltiplas contribuições que geraram essas mudanças, é imprescindível assinalar que a divulgação dos modelos denominados de educação bilíngue e bicultural, e o aprofundamento teórico acerca das concepções sociais, culturais e antropológicas da surdez, se constituem como os elementos mais significativos. Porém, o abandono progressivo da ideologia clínica dominante e a aproximação aos paradigmas socioculturais, não podem ser considerados, por si só, como suficientes para afirmar a existência de um novo olhar educacional.
As limitações na organização de projetos políticos, de cidadania, dos direitos linguísticos, e as dificuldades no processo de reorganização e de reconstrução pedagógicas, ainda sugerem a existência de uma problemática educacional não revelada totalmente. Em outras palavras, a questão não está no quanto os projetos pedagógicos se distanciam do modelo clínico, mas no quanto realmente se aproximam de um olhar antropológico e cultural (Behares, 1993; Padden; Humphries, 1988; Skliar; Massone; Veinberg, 1995).
Ainda hoje, se percebe a necessidade de uma transformação ao nível das representações que conformam os poderes e os saberes clínicos e terapêuticos. Uma transformação que supõe uma análise aprofundada sobre algumas metanarrativas constituídas como grandes “verdades” ancoradas na educação dos surdos.
Entre estas metanarrativas, devemos focalizar a atenção nas aparentes “novidades metodológicas” que permanentemente circulam na pedagogia para surdos. É possível que estas “novidades” acertem, com lucidez o diagnóstico da crise pedagógica atual, mas, geralmente, não conseguem desligar-se da questão das línguas – língua de sinais/língua oral. É obvio que mesmo “resolvida” a questão das línguas como ponto de partida, nada assegura que a discussão sobre uma proposta significativa de educação para surdos chegue como uma simples e natural consequência.
O fato de que a educação dos surdos não se atualize em sua discussão educativa pode revelar a presença de um sentido comum que estabelece uma cadeia de significados obrigatórios, como a seguinte: surdos – deficientes auditivos – outros deficientes – educação especial – reeducação – normalização – integração. Paralelamente a essa continuidade de significados, surge também um conjunto de contrastes binários, que são típicos deste território educacional. Isto é, a pedagogia para surdos se constrói, implícita ou explicitamente, a partir das oposições normalidade/anormalidade, saúde/patologia, ouvinte/surdo, maioria/minoria, oralidade/gestualidade, etc.
Por todas essas razões, uma nova perspectiva não deveria contentar-se simplesmente com a denúncia do fracasso na sua raiz quantitativa e na sua dimensão escolar, nem trabalhar somente sobre os mecanismos possíveis para remediá-lo dentro de uma mesma lógica discursiva. Deveria, sim, desnudar as implicações mais dolorosas que esse fracasso gerou na construção das identidades dos surdos, na sua cidadania, no mundo do trabalho, na linguagem, etc. Deveria, sim, duvidar dos poderes e dos saberes, arraigados na prática educacional, que ainda reproduzem e sustentam o fracasso, ao considerá-lo como um mal necessário no objetivo da naturalização dos surdos em ouvintes.